Não sei o que faça Neste século imprevisível Às vezes a vida parece uma trapaça Que se enfrenta com fôlego sofrível
Não sei o que ser E quero tudo o que couber em mim identidade fixa é ceder A descoberta à estagnação sem um fim
Quero a estabilidade do mundo para constantemente me multiplicar Mas isso tornar-se-á um passado fundo E eu, indeciso, não sei em que me focar
Se surge um dever, priva-me de ler e escrever Quando tenho esse entretenimento de sobejo Logo arranjo uma maneira de não o colher E a seguir, desespero por outro ensejo
Estou demasiado distraído com o que há de bom Neste mundo que não gasta um minuto parado Gostava de repousar, pois o tédio é um dom Maior é o feito quando o cérebro está sossegado
Cérebro Ciborgue À procura do poema inesperado Nesta materialidade esquecida Vive assim o ego descontrolado Numa existência reconstruída.
Porque insisto em criar o que não se encontra? E que não alcanço, à minha frente, numa montra Da ambição iludida da grandeza e da memória Porque acho eu que a realização é a glória?
Se pudesse escolher dormir um sono profundo Na tranquilidade impagável da simplicidade Qual bebé longe do frenesim iracundo Da tremenda guerra com falsa saudade
Pudera saber o que significa estar vivo No tempo da reformulação da vida Sou as células do meu corpo expressivo Ou as peças da identidade digital fluída?
Imparável!
Se parar, a solidão tragar-me-á Como o livro esquecido na estante Que, sem perguntas, ali ficará Um pedaço de mundo errante.
É extenuante ter apenas uma mente humana Estar comigo próprio como se reaprendesse a andar Venha a naturalidade orgânica e ufana Pois, sem tacto, não se sabe respirar.
Porque permitimos que nos tornem em lotófagos? Que conforto enganador deixámos conduzir-nos Quero a pausa curativa do tédio e os afagos De uma civilização onde podemos despir-nos
Maria Joana Maria Joana, Vem ao meu lado Com a paz no colo E no abraço, a paciência do tempo
Passo a passo, atravessamos o mundo Com um cesto de piquenique num braço E a bem-vinda mudança no outro E no rosto, o espelho de uma idade hidratada
Maria Joana, Fala comigo de tudo o que não me aprouver Deu a vida cumplicidade à Terra, Que o Universo espalha e altera E que os poetas escrevem e conservam
Como as estrelas devolvem o material emprestado, Libertando uma sublime inovação Também tu e eu havemos de retornar o empréstimo Mas como as estrelas, deixamos uma marca O corpo celeste ou terreno é uma crisálida De que sai um acabamento acicalado Para jamais volver
Maria Joana, O que vamos nós deixar? Hílare sempre me dizes que a posteridade não importa
— Porquê pensar num legado de que não te lembrarás? A pretensão da tua obra é fútil E traz mais alienação que tacto
Porque é tão importante ficar? Porque não sair da crisálida sem rasto E ser livre por fim? Porque és tu tão importante para o colectivo? Esforça-te até ao alcance do teu braço Que é essa a medida palpável da vivência De contrário, fragmentar-te-ás E não vês a vida respirando perto de ti
Sê inteiro. Sê comigo Não descanses até me teres a mim E ao mundo dentro de ti Tantos se concebem em grandeza Mas a erosão não poupará nem um
Seja o legado: Genético, A fama, A riqueza, O credo espiritual, O patriotismo Ou a propriedade intelectual A vida é esperar morrer
A juventude é curta Até a do Universo cuja fase mais longa Será um deserto escuro e gélido Um dia, a última estrela expirará E o Universo só terá pele morta Até ao último suspiro
A energia que gastas no ideal sublime Não estás a viver Cansas-te e não te banqueteias com a maravilha Vive à tua escala Sê guloso, activo, sociável e priápico Se nem a imensidão do Universo se imortaliza Porque te iludes? Não te decepciones Não gostas disto?
Abraças-me, apertando-me contra o peito Sentimos, então, o batimento cardíaco um do outro A respiração mais próxima e funda E as almas vêem-se nos olhos Como vizinhos à janela Conversando na frescura do céu aberto
— Eu sou mais real do que qualquer texto teu E como crianças no eterno recreio da curiosidade Descobrimos o deslumbre da novidade Esperança para quê? Quem vive com o que a Mãe Terra dá Não precisa de esperança Porque nada lhe falta Só espera quem anseia Mas eu não anseio mais Que o equilíbrio do corpo e da mente Nem que a candura das nossas almas em uníssono
Podes imaginar maior recompensa Do que descansar em paz Como um leve sono Depois de uma vida plena?
O que ganhas tu fechado E escrevendo o que não apreendes? Lendo e vendo apenas na imaginação? Que desperdício de mundo e palavras As palavras sem rosto nem voz são ocas Imitações baratas e quebradiças
O meu corpo é mais prazeroso e quente Que o papel seco e rugoso dos livros Minha cara-metade, pela tua saúde mental, Transforma-te tu na tua obra E não te desiludas com demasiado peso nos ombros
Minha bem-amada Concordarás que nenhuma vida vale a pena desfrutar Sem alguma solidão e vazio Tenho um limite restrito à intensidade E a esse ritmo, ficaria demasiado cheio Deveras pesado e imóvel
É na obstinação de ignorar a insignificância Que há conteúdo para encharcar os sentidos Escrevo não para ser imortal Mas para estender um pouco a juventude do Universo A esta pequena escala
Enquanto houver cérebros acesos Mãos a moldar E gente a circular A fase luminosa durará um pouco mais Consumir sem criar é antecipar as trevas
Assim vou lendo e escrevendo Qual brincadeira do faz-de-conta E contigo absorvo a matéria, o toque E a electricidade da experiência mundana
Maria Joana, Enlacemos as mãos Deitados na relva, na tarde cálida A azáfama da existência é-nos estrangeira Que prazenteira é a nossa discórdia Que se levanta e finda como a brisa do prado Escolhemos ouvir mais do que falar
É neste silêncio que a comunicação repousa E recebemos a devida recarga Sem a dor de pensar Sem a dor de sentir
Somente tu e eu num pedaço sem dono De um espectacular berlinde azul Em contente viagem e maravilhamento
Em 2024, Homo Solitarius Movido pelo saudosismo Que acumulado me infecta Entro num perpétuo abismo Com uma solidão abjecta
Errante por não ter por onde errar Rodeado de personagens que parecem gente Que me oferecem uma nulidade fria inocente Por tê-las havido acompanhar Tantos se consomem na fúria De outros que também parecem gente E que lhes prometem um desfecho diferente, As amolgadas mentes que oferecem penúria
Por fora, sou uma vela apagada E por dentro, um criado do vento A tua presença está falsificada E o exército de vozes é sofrimento